Tenta escrever aquilo que tu és e que não te permites ser
Tornei-me xenófobo depois de um ano a vender um produto a estrangeiros ignorantes sobre esse mesmo produto que eu vendo há 18 anos e que eu próprio ainda não conheço. Tornei-me alcoólico porque não passa uma semana em que não passe um dia em que me sinta bêbedo e, depois de 18 anos a vender álcool (o produto, a cena), a minha resistência tornou-se olimpica. Tornei-me adito ou adicto, porque as coisas que me fazem sentir bem fazem-me sentir mal logo a seguir e eu quero muito continuar a sentir-me bem, ainda que me sinta mal imediatamente porque o que me faz sentir bem é saber que me vou sentir bem enquanto as estou a consumir e se não as consumo, não haverá problema, porque eu não serei um adicto (cê tê, adiCTo) mas apenas alguém que está no controlo da sua adição, como qualquer adicto dirá que o está a fazer. Como eles, os outros que não eu, tenho as minhas coisas sérias, tenho familia, porra, acabei de ser pai. Pai, como sempre quis ser, e não me vejo de outra forma no futuro como aqueles que conheci no Bairro Alto ou no Cais do Sodré ou nas festas de Agostos e Setembro das terrinhas que se juntavam ao nosso grupo de adolescentes a fumar ganzas e falavam de todas as bandas que eu gostava e acabavam a falar do Patriarche e dos filhos que estavam com as mães, com os pais ou com a Casa Pia. Vejo-me assim e todos os dias luto para não ser assim. Tenho vencido a luta às escondidas de toda a gente, ainda que a minha vontade seja a de fazer alarde e dizer ao patrão: hoje, aturei-te sem cheirar uma linha de coca ou sem beber uma garrafa de Jack Daniels. Onde é que está o meu prémio, filho da puta? Não os há, porque isso é viver. Isso é sobreviver. Isso é ser uma pessoa limpa, normal. Isso é "fazer das fraquezas, força", conselho que o meu pai me deu quando tive o meu primeiro desgosto de amor (ai, o amor, o amor, o amor adolescente, o único que existe até gerares). Isso é fazer das fraquezas... foda-se, isso é uma merda constante, quotidiana, diária, horária, minutária, é teres um diálogo constante contigo. Não, não o farás, não, não o farás, ouve lá esta música, lê lá este livro, foda-se, perdi-te, ouve isto, vê isto, pronto, está bem, bebe lá um copo. Mas juizinho, porque a luta continua daqui a minutos. E continuará até ao dia em que a força fenece. Ou até que te apercebas de que estás sentado num banco de jardim ao lado de de putos com menos 20 anos do que tu, a fumar ganzas e a falar da filha que tu tens e que não vês, porque perdeste a luta diária que tiveste contra ti.